Soldados, Legião Urbana

Soldado é uma das músicas mais interessantes, para mim, da Legião Urbana, apesar de ter essa sensação de ser meio clandestina, pois me parece uma música um pouco injustiçada, talvez por ter um arranjo que não explora todo o seu potencial, em razão de ser ainda o começo profissional da banda (primeiro álbum).

A música parece acelerar sobre sua poesia reflexiva, essa sensação se confirma se você experimentar algum software que permita desacelerar a música. Tudo começa do nada com duas batidas secas e diretas, logo em seguida, o teclado em poucas notas, apesar ou mesmo por causa de seu minimalismo, é um dos solos que, para mim, consegue transferir tanta expressividade quantos os mais inspirados de Slash do Guns.

 Nossas meninas estão longe daqui, 
 não temos por quem chorar e nem para onde ir.
 Se lembra quando era só brincadeira,
 fingir ser soldado, a tarde inteira?

As “nossas meninas” se vão, longe levam algo mais, parece tirar tudo, tudo o que nos humaniza. Para onde ir? Por quem chorar? Estamos perdidos. A memória alcança a infância, em uma trise ironia que remete a seu oposto, ser soldado era “só brincadeira”. Estamos agora mergulhados nessa tensão, nessa trise perda da infância, há algo em nós nesse soldado e há algo de soldado em nós.

 Não temos por quem chorar e nem para onde ir.

Uma das impressões fortes dessa música é seu segundo verso, ele surge como um refrão simbólico, talvez seu drama central. Não ter por quem chorar parece nos fazer amorais, indiferentes, frios, perdidos, sem sentido, sem ter para onde ir.

 Mais agora a coragem que temos no coração,
 parece o medo da morte, mais não era então.
 Tenho medo de lhe dizer, porque eu quero tanto.
 Tenho medo, e eu sei porque, estamos esperando.

Essa frustração e perplexidade sobre a perda da coragem de sua geração 80-90 em relação a geração anterior 60-70 é um tema muito presente com Renato, essa perda de impulso revolucionário, transformador, remetido também em outras canções, como em Quando o Sol Bater Na Janela do Seu Quarto, o poeta diz:

"A pouco tempo atrás, poderíamos mudar o mundo, quem roubou nossa coragem?"

Essa desilusão remete a dois momentos “revolucionários” do Rock e que fez parte da formação musical do Renato: Contra-Cultura, através de John Lennon, sobretudo, e o movimento Punk. Em outro artigo abordarei a importância desses “momentos” na evolução e amadurecimento do Rock de algo “infanto-juvenil” para algo adulto, mesmo em bandas apolíticas e contrárias a utopia hippie-contra-cultural ou anarquista-punk.

 Quem é o inimigo, quem é você? 
 Quem é o inimigo, quem é você? 
 Quem é o inimigo, quem é você? 
 Quem é o inimigo, quem é você?

Esse é um dos momentos mais nevrálgicos da música, a repetição, como técnica literária, induz a uma dramatização crescente. Na canção isso é reforçado com entonações diferenciadas pela melodia. Assim, na última frase, o “você” se estende em três tempos, o que acaba por enfatizar o questionamento.

Gosto dessa alusão que a ambiguidade do “quem é você” remete, a possibilidade que esteja enviando a mensagem diretamente para o inimigo: quem é você? Quem é você que está me escutando agora? Contudo, a ambiguidade é afastada na frase seguinte.

Nos defendemos tanto tanto sem saber
Porque.... lutar... ?

Essa pequena frase na canção , se alonga como uma grande evocação, afastando qualquer ambiguidade com o pronome “nós”. O “porque lutar” é o clímax da canção, se essa música recebesse um arranjo melhor produzido, com as distorções da guitarras melhor aproveitadas, acompanhadas de orquestra, elevaria a condição de epifania o questionamento que trucida a canção: porque lutar?

Esse “porque lutar?” assume o protagonismo, reverbera em nossas cabeças. Porque lutar? Porque lutar se não sabemos quem é o inimigo? Ou porque nos defendemos tanto, sem saber porque estamos lutamos? Esses dois sentidos se cruzam e se completam.

Nossas meninas estão longe daqui,
E de repente eu vi você cair.
Não sei armar o que eu senti.
Não sei dizer que vi você aí.

Quem vai saber o que você sentiu.
Quem vai saber o que você pensou.
Quem vai dizer agora o que eu não fiz.
Como explicar a você o que eu quiz.

Agora, se na imagem da infância, a consciência do soldado se mistura com a nossa, agora nos misturamos com esse soldado. As imagens de armar, de queda, são símbolos para expressar pensamentos, sentimentos, querer expressar ou explicar algo.

Somos soldados
Pedindo esmolas

Essa forte imagem do soldado esmolando me remete a uma imagem icônica do soldado alemão, no fim da Primeira Guerra, aleijado e esmolando nas ruas de Berlim. Acredito que seja uma imagem bem conhecida dos livros de história e que simboliza bem a humilhação que será explorada ao extremo no Nazismo. A imagem de um soldado pedindo esmola é o de fim de uma guerra, de derrota, e se completa nos versos seguintes:

A gente não queria lutar
A gente não queria lutar
A gente não queria lutar
A gente não queria lutar

E por fim termina a música, não queríamos lutar, não era a nossa luta… Essa passagem nos permite refletir sobre esse soldado, que não é mais apenas um soldado em sentido literal. Essa frase remete a noção do que toda guerra é: um conflito de interesses econômicos de uns poucos que mobilizam muitos para que lutem e morram por esses interesses. O verbo “queria” revela que não há uma resistência, mas um arrependimento, algo que já ocorreu, mas que dilacera a consciência do soldado.

É uma música triste que quer nos ensinar algo sobre a perversidade da guerra, aqueles que fazem a guerra não a querem, e essa contradição não evita a guerra , mas, pelo contrário, tal paradoxo humano é demonstrada como a essência desumana da guerra.

 
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