Considerações sobre o conceito de ditadura proletária segundo José Paulo Netto

No excelente vídeo [1] do canal Apropuc no Youtube, o professor José Paulo Netto disserta sobre a Comuna de Paris e a Ditadura do Proletariado. Em resumo, suas palavras foram:

Primeiramente, como o professor também frisou, mas cabe aqui reforçar, o conceito de ditadura do proletariado em Marx é vago, impreciso e escasso. Isso se dá, como ele mesmo destaca, porque a expressão só vai tomar importância e polêmica após a revolução russa, com o Estado-partido bolchevique reivindicando tal conceito. Vale destacar, não só o conceito, mas uma interpretação do conceito. Lênin afirmou que para ele “ditadura do proletariado seria a ditadura do partido comunista”, afirmação que o professor (talvez porque tenha faltado tempo) não citou, como oposição ao que Marx entende por ditadura, tal como ele apresenta, “conquista da democracia”.

Outra discordância está justamente aí, o professor cita uma ou duas vezes a correlação entre a “conquista da democracia” e o conceito de “ditadura do proletariado” em Marx, para afirmar que para Marx a ditadura do proletariado seria uma espécie de “democracia radical”. Porém, nesse ponto se equivocou consideravelmente. Primeiro, como ele mesmo falou, essa expressão não tinha ainda sido adotada no Manifesto Comunista, em todas as vezes, apesar do professor também fazer menção, seu sentido é sempre o de “ditadura de classe”. É certo que parte da exposição do professor fica a associação da ditadura com a classe social, e em outros momentos fica o conceito de ditadura como “democracia radical”.

No entanto, em Marx, ditadura do proletariado é um conceito que é aplicado em reflexo ao sentido que ele dá de ditadura da burguesia, desconsiderando as formas de governo e seus regimes, portanto, não se aplica a acepção de “democracia radical” que o professor insiste. Porém, aí, talvez Marx devesse ter adotado o termo “dominação”, ao invés de “ditadura”, para evitar a ambiguidade. Marx adota o termo ditadura burguesa, indiferente se ela é monárquica, republicana ou imperial, apenas para destacar o que está por trás dessas formas políticas, ele tem diante de si as três formas de governo citadas analisadas em seus três livros sobre a França: Lutas de Classes na França, 18 de Brumário de Luís Bonaparte e Guerra Civil em França.

Também é importante citar que “ditadura” era um conceito pouco comum no século XIX no sentido de oposto a democracia, por isso podemos dizer que “conquistar a democracia” em Marx não é incoerente com “ditadura do proletariado”. Na época o equivalente seriam expressões como “despotismo”, “absolutismo”, “tirania” ou até mesmo “império”. No direito romano, uma referência cultural muito presente na Europa, ditador era alguém “eleito” para assumir o poder legalmente em tempos de crise por um tempo determinado, onde suas prerrogativas eram bem definidas.

Ditadura, portanto, tem uma carga semântica muito diferente do que ela vai assumir no século XX, sobretudo, com a propaganda da guerra fria na oposição entre ditadura/comunismo e democracia/capitalismo. Da mesma forma a operação propagandística feita durante o século XX que associava liberalismo/capitalismo a democracia (na versão light dessa farsa, diz que a democracia é o liberalismo político). Ora, nunca os liberais ou iluministas (exceção seria Rousseau, que era mais um romântico do que um iluminista), sobretudo os do século XIX, se associaram as ideias democráticas, pelo contrário, se opuseram a elas. A democracia moderna nasceu com o movimento operário cartista e se expandiu no mundo sob lutas trabalhistas, nunca sob as luzes do liberalismo políticos ou sob o contágio do capitalismo. Claro, conceitos enviesados como “democracia burguesa” serve muito bem para alimentar essa falsa correlação entre democracia e capitalismo que uma rápida paginada nos livros de história dissiparia.

Talvez o debate deva se centrar aí: o termo dominação seria mais adequado a nossa época do que o termo ditadura (de classe), já que em Marx a ditadura do proletariado significa a dominação de uma classe? Ou talvez seja um trabalho inútil, pois a máquina de propaganda poderá voltar a funcionar com a mesma frivolidade com que terroristas viram rebeldes e rebeldes viram terroristas nas mídias capitalistas. Uma saída seria nos apropriar desse conceito como uma forma de fornecer ao proletariado uma visão mais profunda das relações de poder, fora do teatro político-institucional, para o teatro social, para a mobilização, para sair das ilusões da superfície. Como uma forma de denunciar que a “democracia”, “república” ou “ditadura” são apenas a superfície de uma dada dominação de classe e centrar na luta contra o capital, que é quem controla as engrenagens do poder através da propriedade das mídias, do financiamento das campanhas e da corrupção (seja ela ilegal ou um legalizado lobby).

Adotar o nihilismo fajuto de “democracia burguesa” [1] ou estabelecer essa contradição como plutocracia vs democracia é mascarar a realidade. O direito de voto é uma conquista proletária. No Brasil, por exemplo, foi a luta sindical quem conquistou nossa redemocratização, porém essa nossa conquista é alvo permanente do capital.

O professor ainda chega a destacar a importância do Estado em Marx, levando esse argumento até a posteridade e a atualidade. Quem fala em “novo Estado” a partir da experiência da Comuna de Paris é Lênin em O Estado e a Revolução (e o professor se declara abertamente leninista ao final), e os argumentos que Lênin tece são tão inexistentes ou absurdos que não consegui extrair nada que pareça com um argumento para colocar aqui. Marx chega a falar, analisando a Comuna de Paris, que o crescimento do Estado, diferente do que ele supunha, servia aos propósitos capitalistas imperais, apesar da cantilena minarquista dos liberais (aliás, nas obras de Marx estão cheias de exemplos de contradições entre a pregação liberal e a prática política quando eles assumem o poder). É claro que é bom ressaltar que a maioria dos dirigentes da Comuna eram anarquistas, apesar de Marx ressaltar como os blanquistas e proudhonistas acabaram praticando as concepções comunistas, ao invés das próprias utopias.

Não posso afirmar categoricamente que Marx defende a abolição imediata do Estado como primeira tarefa do comunismo, não o faço porque na maioria dos seus textos o fim do Estado surge espontaneamente através do fim das classes sociais, e o fim das classes sociais surgem como resultado das mudanças provocadas pela dominação do proletariado. O que posso afirmar é que na Guerra Civil em França, onde Marx analisa a Comuna de Paris, a abolição imediata do Estado é a única interpretação possível, se isso tem valor universal, como afirma o professor, já é outra questão.

Há muitas lições específicas, como o professor busca ressaltar, mas a maior contribuição da Comuna de Paris, como o próprio Marx diz, é sua própria existência como o primeiro governo proletário, o resto, somos nós, os proletários de hoje, que devemos construir.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=NjjWnGFwPJk

[2] O único sentido correto de democracia burguesa equivaleria a “ditadura burguesa”, pois significaria que a burguesia entre si disputa eleições através de vários controles (financiamento, mídias, lobby, bolsa de valores, influência no judiciário, etc). Mas seria uma ditadura, porque quem quer que governo deve governar seja representando ou seja cedendo a burguesia. O PT, por exemplo, busca criar uma frente com o capital industrial/comercial contra o capital financeiro, representado descaradamente pelo PSDB. Seria o mesmo que dizer que a democracia burguesa é a dominação da burguesia com eleições regulares, mas sempre minando o acesso a qualquer partido que efetivamente desafie o poder burguês ou não conseguindo evitar sua vitória vem a sabotagem. Claro que em uma situação de crise eles perdem as rédeas tal como Luis XVI perdeu depois de convocar a Assembleia dos Estados Gerais.

 
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