Olavo e o Dalai-Lama marxista

Esse é um artigo em resposta a um panfleto anti-comunista de 2003 publicado em O Globo sobre a declaração de Dalai Lama ser marxista por um tal de Olavo de Carvalho, o guru do arqui-udenismo histérico.

O “sumo-intelectual” da Veja inicia com sua conhecida elegância intelectual: um Dalai-Lama se declarar marxista o torna “meio mentiroso, meio idiota”. Em que parte e porque a mentira e a idiotice está na equação ninguém descobrirá no seu panfleto simultaneamente mentiroso e idiota.

O astrólogo-teólogo-de-conspiração, que entre outras pérolas alegar ser a ONU um espécie de Internacional Comunista camuflada e denuncia o grande capitalista como “fomentador do comunismo”, afirma:

“campanha mundial para branquear a imagem do marxismo, desvinculando-o de qualquer responsabilidade pelos regimes genocidas que criou”

Porque não Revel, um ex-marxista como ele, uma boa oportunidade para não incluir como genocida a escravidão, a colonização, duas grandes guerras, duas bombas atômicas obradas pelo “capitalismo”. E não esquecemos de todas as ditaduras latino-americanas legadas pelos nossos anti-comunistas sob apoio moral da grande democracia americana.

Por onde semearam democracias anti-comunistas brotaram ditaduras capitalistas E e o stalinismo? O primeiro e maior crítico do stalinismo era um comunista, e não qualquer um, foi o líder da revolução russa, Leon Trótsky.

“Quem quer que tenha lido Karl Marx e os teóricos do liberal-capitalismo sabe que, nestes últimos, as preocupações morais vêm em primeiro lugar, enquanto naquele estão ausentes por completo. De John Locke a Bertrand de Jouvenel, de Adam Smith a Alain Peyrefitte, de Aléxis de Tocqueville a Russel Kirk, a justificação do capitalismo é de ordem essencialmente moral. Já Marx não esconde seu desprezo por leis morais de qualquer espécie, às quais nega toda substancialidade, fazendo delas meras superestruturas da economia, isto é, discursos de legitimação do interesse de classe, seja escravista, feudal, burguês ou proletário. Só o que Marx alega contra o capitalismo é que, a partir de um certo ponto, ele freia o desenvolvimento dos meios de produção que ele próprio criou, isto é, se torna improdutivo. Não é um argumento moral, é econômico, histórico e técnico. Ademais, é falso: o que freia o desenvolvimento das forças produtivas é a burocracia estatal socialista (que o digam nossos 41% de impostos).”

Acusar de bajulação os argumentos acima seria um elogio que Olavo não merece. Para Marx a moral é “superestrutura” em uma economia onde todo valor emana do trabalho e em um método dialético, isto é, para Marx, a moral emana do trabalho onde ambos se relacionam dialeticamente. A deturpação olaviana está em relação dialética com a ignorância do leitor.

Ao afirmar que o capitalismo vai ser substituído quando se tornar destrutivo (e não improdutivo), Marx apena observa a amoralidade com que o capitalismo passeou pela pirataria, escravidão, colonialismo, guerras, ditaduras, genocídios, exploração, etc. Que moralidade clássica (coragem, sabedoria, moderação) ou cristã (piedade, humildade, caridade) oferece o capitalismo? Agora pegue os sete pecados capitais: vaidade, inveja, ira, acídia, avareza, gula e luxúria, olhe em qualquer grande sociedade capitalista, e tente encontrar algum desses pecados que não esteja sendo abertamente exaltado. O liberal moralizou a ambição, transformou em uma virtude cuja recompensa não é a honra ou a salvação, mas o dinheiro.

“Para piorar as coisas, o apelo ao genocídio como meio razoável de ação revolucionária está nos próprios escritos de Marx e não é de maneira alguma um desvio posterior. Entusiasta da seleção darwiniana, Marx achava lógico e desejável que, na transição revolucionária, o socialismo eliminasse “uns quantos povos inferiores” (sic), especialmente orientais. O destino dos seguidores de S. Santidade já estava claramente anunciado nessas palavras”.

Que escritos? Ao pesquisar em que obra teria Marx feito tal afirmação, só encontrei vários sites anti-comunistas que também não se deram o trabalho de citar em que obra Marx defendeu extermínio de povos inferiores, apesar dessa passagem ser conclusiva para abominarem o comunismo. Das duas umas, ou ela é falsa ou ela está fora de contexto. Dizer que Marx é entusiasta da seleção darwiniana depende de muita ignorância para desconhecer o darwinismo social como dogma liberal. Não são os liberais que afirmam que a desigualdade social é um resultado justo da luta de concorrência no mercado dos melhores sobre os piores?

“Longe de ter-se afastado de Marx para aderir a um maquiavelismo cruel, foram seus seguidores e discípulos tardios que, encabulados com o ostensivo amoralismo do mestre, maquiaram suas palavras para lhes dar um aparente sentido sentimentalóide, humanitário, até cristão (v. Erich Fromm, “O Conceito Marxista do Homem”; Roger Garaudy, “Perspectivas do Homem”). Para esse fim, escavaram textos de juventude que pareciam ter um vago sentido de revolta contra o mal – mas, prudentemente, mudaram de assunto quando começaram a aparecer poemas de satanismo explícito nos quais o jovem Marx se revelava ainda mais malicioso e torpe que o Marx adulto (v. Richard Wurmbrand, “Marx e Satã”)”

O comunista é motivado moralmente contra a injustiça, a miséria, a desigualdade, a exploração. Somente um anticomunista doentio negaria isso. Mas estar motivado moralmente é a prova que a moral não regra a sociedade, se regrasse, não haveria motivação moral política, isto é, a desigualdade. Por isso o foco em transformar a sociedade capitalista e não em brigar contra a moral tipicamente capitalista em nome de uma imaginária, pois para Marx a moral social emana da sociedade.

Olavo associa Marx ao maquiavelismo, mesmo sendo Maquiavel um teórico da burguesia emergente e conservador. O que Gramsci falou sobre Maquiavel, foi Gramsci, não Marx. Contribiuções de Erich Fromm e Roger Garaudy estão na mesma ordem do que qualquer contribuição tardia que o liberalismo clássico. Estariam encabulados os liberais neoclássicos com o “valor-trabalho” dos liberais clássicos, ou seria o “equilíbrio geral” um vexame moral dos neoliberais sobre os neoclássicos?

E o Richard Wurmbrand? Precisaríamos comprar um livro completo de histérico panfletarismo anticomunista para saber se tais poemas realmente existem e se são realmente satânicos. Que tipo de arrematado trouxa cairia nesse truque barato? Os leitores da Veja! Mas um típico leitor da Veja é um crédulo, não irá conferir para confirmar. Resultado, o marketing falhou.

“S. Santidade, na ânsia louca de embelezar o marxismo, não se limita a isentá-lo da responsabilidade pelas conseqüências de sua aplicação: limpa-o até mesmo de seu conteúdo teorético explícito, fazendo da luta de classes um acréscimo acidental posterior, quando ela é o núcleo essencial, o centro mesmo da teoria marxista. Marxismo sem luta de classes é a geometria de Euclides sem pontos, retas e planos.

Dizer que os regimes da URSS, da China e do Vietnã se afastaram do marxismo ao concentrar-se na luta de classes é o mesmo que dizer que Fernandinho Beira-Mar se afastou do narcotráfico ao comprar cocaína das Farc. É o nonsense completo, que um conhecedor da matéria não tem o direito de proferir nem mesmo em estado de embriaguez.”

Marx, não apenas uma vez, declarou que o conceito de “luta de classes” não foi uma contribuição dele, mas de autores “burgueses” franceses. Para esses autores burgueses, a luta de classes é um fato social, não é um “programa de partido”, quando se discute redução dos direitos trabalhistas, temos uma luta de classes, porque beneficia uma classe (capitalistas) e prejudica outra (trabalhadores), uma luta pode ser de ideias, não necessariamente uma guerra civil.

Mais uma vez, isentar o capitalismo da escravidão, colonialismo, ditaduras, torturas, espionagens, extermínios, guerras, etc. não se aplica, claro, a um “embelezamento” para um olavete, é apenas um método e um ganha pão. De fato, Olavo e o nível intelectual de suas analogias se merecem.

“Também não faltará quem, jamais tendo dado um pio contra a perseguição antibudista no Tibete, se faça de escandalizado com a dureza desta minha crítica ao líder dos budistas – como se lembrar seus deveres a uma autoridade espiritual relapsa fosse crime maior do que matar um milhão de seus discípulos.”

Claro, Olavo tanto sabe melhor sobre o assunto que simplesmente preleciona o Dalai Lama sobre que autoridade e deveres tem o líder espiritual dos budistas, e ai daqueles que se “escandalizarem” com tamanha modéstia! Pois um milhão de budistas mortos que ele tirou de não sei onde sem nenhuma citação é um testemunho a seu favor. Veja que beleza, um número tão redondo, um milhão. Não um milhão e alguma coisa, mas 1 milhão. Bem fácil de decorar. Tudo para promover o ódio político, alimentado por preconceitos, mentiras e imbecilidades.

“Mas, no fundo, não estranho que até o Dalai-Lama acabe por se prosternar aos pés do Grande Satã comedor de monges. Afinal, a CNBB não faz o mesmo? Igrejas evangélicas inteiras não se aliaram ao partido que defende as Farc? Cardeais e pastores não acorreram às ruas, em massa, para proteger o monstruoso regime de Saddam Hussein?”

Está bem entendido? CNBB, Dalai-Lama, várias igrejas evangélicas, cardeais, pastores, o mundo eclesiástico todo, todos errados. Só um é a verdade, o caminho e a vida contra o “grande satã” (expressão que jihadistas usam), e não é o Cristo, é o Olavo de Carvalho.

“O Evangelho não estava brincando quando anunciava que o reino da mentira arriscaria seduzir até os eleitos.”

Dizem também que o diabo sabe citar a bíblia.

http://www.olavodecarvalho.org/semana/030614globo.htm

 
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