Esquerdismo como ala progressista do liberalismo.

Reza a lenda que tudo começa com a queda do Muro de Berlin, mas o que ocorreu de fato foi que a vitória americana se deu com a capitulação de Moscou** na Guerra Fria (a própria queda do muro foi iniciativa soviética). E também fato foram suas consequências, empurrando todas as forças políticas à direita.

Assim, socialistas revolucionários (comunistas) se tornaram socialistas reformistas (social-democratas), socialistas reformistas se tornaram liberalistas* progressistas (esquerda), liberal-progressistas se tornaram liberal-conservadores (direita), conservadores se tornaram reacionários (extrema-direita), e por fim, anarquistas se tornaram “anarquistas”.

Enquanto o socialismo reformista (como de um Bernie Sanders) enfoca questões sanitárias básicas, como saúde, educação e moradia, o esquerdismo é mundialmente pautado pela direita do partido Democrata norte-americano que se resume a temas completamente sem custos ao capital: casamento gay, liberação do aborto, liberação das drogas, aquecimento global, cotas raciais, etc. Está claro que hoje defender melhores salários é muito mais subversivo do que liberar drogas. Essas trivialidades não só engorda os votos conservadores por escandalizar parte da classe trabalhadora, como ainda desvia dos verdadeiros temas importante ao trabalhador. É isso que nos EUA se chama guerra cultural (cultural wars), polêmicas histéricas meramente retóricas sem nenhum efeito prático sobre a participação do trabalho na riqueza nacional.

O esquerdismo não é, como afirmava Lênin, uma doença infantil do comunismo, porque é uma tendência criada entre partidos burgueses, cujo Partido Democrata norte-americano é um exemplo vivo. O esquerdismo é como se dizia no século 19, parte da polarização entre alas do liberalismo, assim como no campo socialista há polarização entre reformistas e revolucionários. O esquerdismo não só deve ser combatido pelos socialistas, como ainda dever pegar carona com a maciça propaganda conservadora, mas mudando as coordenadas dos termos. Como o de defender a família, mas abordando a defesa da família como o direito a educação, saúde, etc. Ou o de ser contra a liberação das drogas, mas defendendo o controle através da estatização da produção (abolir o tráfico acabando com o comércio clandestino de drogas). Bernie Sanders fez muito bem isso.

A Contra-Reforma Social que ainda vivenciamos, conhecida também como neoliberalismo, monetarismo e austeridade, colocou em marcha ré todas as conquistas de um século alcançadas pelos socialistas-reformistas no Ocidente, não ficou pedra sob pedra, até que os países desenvolvidos começaram a decair socialmente, aumentando, depois de muito tempo, seus níveis de desigualdade. Ficou patente que era a Guerra Fria, e não as vantagens comparativas do gradualismo, que favoreceu os socialistas-reformistas, pois o capital tinha que ceder nas reivindicações trabalhistas para garantir a superioridade social frente ao bloco soviético. Seria politicamente perigoso se os trabalhadores ocidentais percebessem que se viveriam melhor no bloco socialista do que no bloco capitalista.

Para Thatcher, uma das precursora da Contra-Reforma, dedica como maior legado de seu governo impopular ter transformado o partido trabalhista de um socialista para esquerdista, isto é, o New Labour.

O que os partidos trabalhistas do mundo ocidental não perceberam, apesar de óbvio, é que ao abandonarem o socialismo pelo esquerdismo, não só não ganharam terreno eleitoral como cederam aos conservadores. A prova disso é a crise partidária que eles próprios vivem. O cúmulo dessa crise européia está na oposição aos “ex-socialistas”, todos nominalmente esquerdistas (Die Linke, Bloco de Esquerda, Podemos, Syriza, etc). Isto é, assim como a alternativa a Perestróika (semi-liberalismo) de Gorbatchev foi a Catastróika (ultra-liberalismo) de Yeltin, o que resta aos trabalhadores europeus é aumentar a dose do veneno.

A hegemonia contra-reformista é tal que sob os argumentos hegemônicos atuais a Guerra Fria não teria sido uma luta entre o capitalismo e o comunismo (como reza lenda), ou menos ainda uma luta entre democracia capitalista e ditadura comunista (pois aceitam bem as ditaduras anticomunistas apoiadas pelos “democratas” americanos). Nos termos atuais, a Guerra Fria foi uma luta entre o socialismo fabiano de Keynes e o socialismo marxiano de Lênin.

Contudo, a contra-reforma esbarrou na crise de 2008 que pela primeira vez colocou os países mais desenvolvidos no olho do furacão, contudo, mantiveram privilégios bem curiosos como o de liderar o discurso da austeridade realizando níveis de endividamento que levaria qualquer outro país ao colapso, vide dívida/pib do Japão, Inglaterra, EUA, etc.

A regressão provocada pela grande contra-reforma iniciada por Pinochet, Thatcher e Reagan (governos altamente impopulares que foram canonizados midiaticamente) nos levou a um contexto mais próximo do século de Marx, agora, como na época de Marx, os partidos trabalhistas (socialistas, comunistas, anarquistas, etc) precisam combater os liberais (liberal-progressistas, esquerdistas) como falsa solução aos trabalhadores frente aos conservadores (liberal-conservadores, direitistas), desmoralizar a própria polarização, e esse é o maior mérito de Bernie Sanders em sua campanha sem chances: borrar as fronteiras entre esquerda (liberais) e direita (conservadores) nos EUA. O maior exemplo disso é ele ter sido o primeiro democrata da história a ser convidado pela Liberty University, uma universidade abertamente conservadora.

Obviamente, nenhuma transformação real será produto de um Bernie Sanders, muito pelo contrário. Bernie Sanders, tais como todos os socialistas reformistas, distensionam a luta de classes a ponto de levar a classe trabalhadora a total exaustão política, sempre realimentando com ilusões eleitorais frustradas (vide Obama), servem apenas como sintomas, seu reformismo só serve para sucumbir a revolução ou a reação, e historicamente, tendem a reação. Mas um avanço do reacionarismo é um sintoma mais favorável do que Bernie Sanders, historicamente as revoluções comunistas surgem onde o reacionarismo estava em seu auge e pareciam inabaláveis: Rússia, China, Cuba, Vietnã, Coreia, etc.

Revitalizar a via revolucionária do socialismo contra as tendências esquerdistas (liberal-progressistas), e ainda ter energia para polemizar com o que resta dos poucos reformistas (social-democratas) que não se converteram ao esquerdismo, é o maior trabalho intelectual imposto a nosso tempo. Não é um trabalho fácil, talvez seja impossível sem um novo Karl Marx de nosso tempo, seja pelo desafio intelectual que ele exige, seja pela pouca capilaridade desse tema nas instituições da classe trabalhadora (sindicatos, partidos, etc), mas sobretudo dada os retrocessos que o stalinismo provocou no movimento comunista, e que o trotkismo não é totalmente isento ou criticamente suficiente.

O comunismo hoje é uma agulha em um palheiro de idealismos, stalinismos, dogmatismos, sectarismos, marxismos, etc. É fundamental ir ao essencial, isto é, estudar cientificamente as relações materiais dada em cada contexto e através, e somente através da autoridade dos fatos, cientificamente, (isto é, sem doutrinas, mesmo sendo elas marxistas), trilhar taticamente, seja por eleições, seja por revoluções, o caminho para a emancipação do trabalhador, realizado pelo próprio trabalhador, e não por um partido que se intitule sua vanguarda (esse vanguardismo deu todos os recursos para o sucesso completo do aparelhamento stalinista).

Hoje, percebo mais em Chomsky uma epistemologia muito mais materialista do que em todos os marxistas vivos e mortos dos últimos 100 anos. A abordagem das relações materiais é muito mais presente, analítica e conexa do que em um texto de Marx, que toma uma feição muito mais “ensaística”. Temos que acabar com toda a tradição dogmática, ortodoxa, sectária e idealizante (focada na superestrutura) e retomar as análises dialéticas sem generalizações arbitrárias, que são sempre brechas para retomar o idealismo no marxismo sob o pretexto de oferecer maior atenção a superestrutura/ideologias, etc. O marxismo em todo o século 20 está tão atado a essess pretextos pró-ideialistas que podemos concluir, como Marx uma vez afirmou: eu Marx não sou marxista. E é confusamente estranho e paradoxal ter que rejeitar o marxismo em geral para enfatizar essa análise materialista de Marx que um não-marxista faz bem melhor nos nossos dias, mas é o nosso desafio.

Em outras palavras, entre um auto-denominado marxista ortodoxo Zizek e um anarquista desidelogizado como Chomsky, as contribuições das críticas de Marx nos levam ao segundo. Talvez Chomsky devesse ter melhor atenção pela Boitempo editorial do que esse defensor do retorno a Hegel que a Boitempo tanto prestigia.

** Verificando a história real do desmantelamento do bloco soviético é fácil identificar que a estagnação soviética virou recessão com a liberalização econômica moderada de Gorbachev (peretróstica) gerando uma crise inflacionária e virou colapso com o liberalismo radical de Yeltsin derrubando 50% do PIB (satiricamente identificado como catastróica). O que destruiu a economia soviética não foi o excesso de socialismo que o diga a ascenção econômica da China comunista, mas as perversões políticas do regime stalinista possibilitaram o desenlace. Trotsky defendia uma revolução política de baixo para cima porque previu que o regime era politicamente irreformável (houve duas tentativas de reformar o stalinismo, Krushev e Gorbatchev). E sem o fracassado golpe de estado dos stalinistas linha-dura contra Gorbachev, não seria possível Yeltin, aquele que criminalizou o comunismo, privatizou toda a economia russa e destruiu metade do PIB, dando de bandeja aos EUA a vitória total na Guerra Fria. No final das contas o stalinismo foi mais efetivo no anti-comunismo do que os EUA, mantando/aprisionando todos os revolucionários bolcheviques no Grande Expurgo, se opondo a revolução comunista na China e na Espanha, abandonando os comunistas alemães em sua desastrosa aliança com Hitler, desmoralizando o comunismo com as suas perversões políticas, isolando o socialismo Iuguslavo, esmagando a Primavera de Praga, assassinando o maior líder da Revolução Russa (Trotsky), e por fim, em seu último golpe, deu ao mundo o seu nêmese: Yeltsin.

 
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